31/10/2014
Por Ronaldo Pagotto
O
decreto presidencial 8243/2014 implementa a Política e o Sistema
Nacional de Participação Social foi publicado no último 25 de maio e
desde então vem sendo discutido na grande imprensa, no Congresso
Nacional, nas redes sociais etc. E muito se fala sem conhecer, induzindo
a opinião pública com fantasmas e outras alegações que apenas demonstra
o quanto essa pauta da participação popular é temida.
A
relação entre esse simples decreto e a bandeira estrutural da reforma
política é evidente, e buscaremos demonstrar isso nesse artigo.
1. Qual o papel dos Conselhos e por que mudar o que já existe?
Os
Conselhos existem desde o primeiro governo de Getulio Vargas, que
instituiu o Conselho Nacional do Café. Desde então já temos mais de 30
Conselhos Nacionais, que se desdobram em estaduais, regionais,
municipais, de bairros etc.
A marca desses Conselhos é
na formulação de políticas públicas e propostas mais estruturais, que,
submetidas ao chefe do executivo, podem se converter em projetos de lei
ou políticas públicas. Alguns exemplos: política da merenda escolar, o
programa de aquisição de alimentos, a estruturação do SUS, a política
nacional de resíduos sólidos, dentre centenas de outras já implantadas e
que ajudam a melhorar a vida do povo. Um dos mais emblemáticos é o
Conselho Nacional de Saúde, que foi responsável pela construção da maior
parte das propostas que conformaram o projeto do SUS na Constituinte de
1988.
Os membros são definidos por uma separação geral,
sempre com a maior parte advindo da sociedade civil. Não há função
remunerada para o funcionamento nos Conselhos, todo o trabalho é
voluntário.
A mudança com o decreto é para tornar o funcionamento mais homogêneo, integrado entre si, constituir o método de participação popular como uma política definitiva, instituir métodos de participação presencial, com ampla publicidade, virtual, etc.
A mudança com o decreto é para tornar o funcionamento mais homogêneo, integrado entre si, constituir o método de participação popular como uma política definitiva, instituir métodos de participação presencial, com ampla publicidade, virtual, etc.
2. Afinal, o que define o decreto de importante?
O decreto tem centralidade nas seguintes definições:
maior integração entre os conselhos existentes, com a criação de fóruns interconselhos;
criação da ouvidoria e mesa de diálogo para facilitar o acompanhamento das propostas;
formatação
de mecanismos de participação para uniformizar o funcionamento dos
conselhos: composição, métodos de eleição, publicidade dos atos, os
instrumentos de participação (fóruns, audiências, consultas,
participação virtual e os próprios conselhos);
É uma
forma de aproveitar as melhores práticas dos Conselhos com diretrizes
gerais de uma proposta para essa participação, não limitadas ao que já
vem sendo feito, mas apresentadas como horizonte para a organização
dessa relação entre sociedade civil e governo, que se dá no interior
desse processo dos Conselhos.
3. O decreto ultrapassa os limites da atuação do executivo e fere a separação dos poderes?
O
decreto não fere a separação dos poderes, tampouco passa por cima do
Congresso Nacional. Está dentro das responsabilidades privativas da
Presidência da República, definidas no art. 84 da Constituição Federal,
limitadas nesse caso a organização interna do Poder Executivo.
Não
fere as prerrogativas, seja por tratar apenas de organização dos
processos já existentes, seja por não criar novas despesas, cargos,
instituir órgãos públicos ou criar estruturas. Todas as definições são
restritas ao funcionamento dos Conselhos e aprimoramento dos seus
mecanismos.
4. O decreto institui uma política bolivariana e dos soviets no Brasil?
Essa
é uma visão duplamente deturpada. A primeira é deturpar o significado
dos processos dos Soviets (Rússia pré revolução de 1917) e processos
chamados de bolivarianos (Venezuela e Bolívia). Nesses processos o que
se fez e faz na atualidade é criar processos de uma participação popular
ativa, seja na proposição de políticas, seja no controle das ações do
Estado, seja também no acompanhamento do parlamento e executivo.
A segunda é
quanto os Conselhos (leia-se os processos existentes desde meados da
década de 1930) seriam um ataque à democracia brasileira. Trocando em
miúdos, seria o mesmo que dizer que ajustar e aprimorar – ainda que de
forma limitada – nossa democracia seria atacá-la. Nessa lógica, o ataque
a democracia seria em torna-lá um pouco mais democrática. Não precisa
muito para constatar que se trata de uma paranóia inexplicável, lançada
por setores avessos a participação popular, aos processos de
envolvimento do povo, etc. Vale destacar, uma vez mais, que se trata de
uma paranóia com singelas mudanças nesses processos, longe dos desafios
para avançar na democracia brasileira.
5. O decreto terá que ser cumprido pelo futuro governo. Isso não seria uma forma de gerar instabilidade se a oposição vencer?
Os
Decretos Presidenciais são expedidos pela Presidência da República, e
se for da conveniência será mantido, do contrário com a mesma
formalidade para sua edição será a sua revogação. O caminho para
instituir é o mesmo para revogar, portanto, se porventura houver mudança
de governo, o novo governo logo
no primeiro dia de mandato revoga o que
está ao seu alcance, o que inclui os Decretos Presidenciais.
6. Porque construir as políticas pelos Conselhos e não pelas estruturas já existentes?
Trata-se
de uma questão complexa. A democracia conforma dois grupos:
representantes e representados. Atribui a eles responsabilidades
distintas, parte delas concorrentes (votar e ser votado) e a maior parte
complementar (os primeiros são eleitos para representar o segundo
grupo).
Entretanto, esse formato é datado do final do
século XVIII e carece de profundos ajustes, sendo destes ajustes um
deles ganha destaque: o papel dos chamados representados na democracia,
não cabendo a postura de apenas eleger e esperar, mas adotar uma posição
ativa no processo político.
Essa postura ativa depende, dentro da institucionalidade, de criar espaços e mecanismos que estimulem e criem espaço para isso.
As
estruturas existentes não foram construídas para contar com a
participação popular, são na maioria das vezes estruturas burocráticas,
distantes do povo, encasteladas e apresentando propostas que seriam
voltadas para a maioria. Mas se tais propostas não contarem, desde a sua
concepção e construção, com a participação dos setores a que se
destinam, tendem a ser propostas distantes da realidade, baseadas em
análises do passado e não alcançando as reais necessidades do povo.
Instituir
mecanismos de participação vai ao encontro dessa dinâmica histórica e
sinaliza para mudanças importantes e necessárias na democracia
brasileira.
7. Qual a relação entre o Decreto 8243 e as questões estruturais do sistema político brasileiro?
O
decreto é uma singela medida de ajuste e aprimoramento de mecanismos
existentes de participação popular. Mas não revertem o problema de um
sistema que pouco consulta a população, que não dispõe de mecanismos
efetivos de controle das políticas e dos representantes, que quando
muito se resumem a não votar nas futuras eleições – nos casos de não
aprovação de um eleito.
A reação ao decreto, que não vem
dos setores progressistas (para demonstrar o quanto a proposta é
limitada), mas justamente dos setores mais conservadores e atrasados,
que temerosos do decreto no fundo indicam temor à participação popular.
Tal
reação é, por si só, um indicador de que o decreto está no caminho
certo. Esses setores avessos as mudanças necessárias na sociedade
brasileira, sabem que quanto maior a participação social, maior a
tendência a democracia representar os interesses das maiorias –
diferente do que nos acostumamos no Brasil.
8. Quais são os principais problemas do sistema político brasileiro?
A
democracia brasileira foi instituída oficialmente em 1889 e 1891, com a
Constituição. Nesses pouco mais de 120 anos, nossa democracia passou 40
anos com voto exclusivo dos homens alfabetizados (menos da metade da
população masculina), aproximadamente 50 anos com voto exclusivo de
homens e mulheres alfabetizados (igualmente na faixa dos 50% da
população) e apenas em 1988, ou seja, com menos de 30 anos com o voto
universal (homens e mulheres, analfabetos e pobres). Isso sem contarmos
com os 30 anos somando as duas ditaduras militares. Ou seja, na maior
parte do nosso processo democrático, estivemos sob uma democracia
restrita ou ditaduras.
Nosso sistema político tem
inúmeros problemas, mas para destacar os mais centrais, por uma opção
didática em duas dimensões: os problemas de forma e os de conteúdo.
Os
problemas de forma, de modelo, seria centralmente um “defeito” de
origem: ela é excessivamente representativa e pouco ativo,
participativa. Nela o povo vota a cada 2 anos, seja para o
executivo/legislativo federal e dos estados, seja para o executivo e
legislativos municipais, em um calendário de expectativa – frise-se que
desde o ponto de vista da institucionalidade – do povo. Com mecanismos
de participação, seja via plebiscito, referendo ou na proposição de leis
ou controle do trabalho dos representantes, extremamente complexos e
difíceis. Tanto que temos poucos processos de leis criadas a partir da
vontade popular, plebiscitos e referendos que somados não alcançam a
soma dos dedos das mãos.
E esse processo viciado,
apassivador, se esgotou. O povo não quer mais ter apenas o período
eleitoral para apresentar suas opiniões, críticas e anseios, e, não
raras vezes, não quer mais ser importunado no período eleitoral por
absoluta crise desse modelo.
Quanto aos problemas de
conteúdo, mais estruturais, teríamos duas ordens igualmente importantes.
A primeira é uma igualdade formal entre desiguais do ponto de vista da
visibilidade, da ocupação de espaços da política, redundando em um
sistema formal em que resulta em um sistema político conformado por
homens, brancos, ricos (ou financiados por ricos), heterossexuais, etc. A
isso se soma uma segunda ordem, igualmente relevante, que é um sistema
político marcado pela supremacia do poder econômico nos processos
eleitorais. Candidatos são palatáveis ou não a depender do quanto
conseguem captar de doações (que ainda utilizamos esse termos
inadequado, o correto seria utilizar o conceito de investimento),
conformando parlamentos com 80 a 90% de representantes dos grandes
grupos...economicos.
9. Esses problemas podem ser resolvidos por ajustes no sistema eleitoral? Não seria melhor fazer isso pelo Congresso Nacional?
Acreditar
que esses problemas possam ser resolvidos com um projeto de lei aqui,
outro acolá é reduzir a dimensão dos limites reais e efetivos da nossa
democracia. Não estamos propondo uma reforma no sistema eleitoral,
tópica, homeopática, mas uma reforma estrutural no nosso sistema
político e que seja capaz de enfrentar as duas dimensões dos seus
limites (forma e conteúdo).
Outra questão sobre o caminho dessa
mudança é acreditar que será realizada pelo Congresso Nacional eleito
com essas distorções e incapaz de aprovar leis que prejudique os seus
próprios interesses. Esse caminho não existe.
O caminho
que apostamos é via uma Assembléia Constituinte, com dupla
exclusividade: eleita estritamente para a Constituinte e especificamente
para reformar o Sistema Político, dentro das possibilidades do poder
constituinte derivado.
10. Falar em reforma
política não é desviar o tema central das lutas populares, especialmente
os milhões que se mobilizaram em junho de 2013?
Essa
questão não é incomum e induz a simplificações perigosas. A começar por
criar uma visão dual do processo, como se destacar uma luta fosse
desconsiderar as lutas por direitos e que povoam as ruas do Brasil desde
muito tempo (inclusive antes de junho).
As bandeiras de junho eram
majoritariamente progressistas, parte delas dentro das chamadas lutas
econômicas, tais como mais moradias, direito ao transporte público e
gratuito, à saúde e educação públicas e de qualidade, à redução do custo
de vida, dentre outras e outra parte de bandeiras mais gerais sobre a
participação política: maior participação e visibilidade da mulher, dos
negros, LGBTT, de denúncia ao representantes eleitos do executivo e
legislativo das três esferas e maior participação popular dentro do
sistema político.
E a maior parte dessas bandeiras
populares e democráticas encontram uma barreira duríssima: os
parlamentos nacional, estaduais e municipais não aprovam essas mudanças.
Poderíamos
afirmar que para passar – aprovar – basta a pressão popular, uma
verdade absoluta, mas também é verdade que temos um sistema político
marcado por representantes dos grandes grupos econômicos e avessos a
essas bandeiras populares e democráticas. Portanto, não se trata de
pressionar para a aprovação de uma ou outra bandeira, mas identificar
que com esse sistema, o povo paga a conta e elege representantes das
minorias sociais, conformando uma discrepância estrutural: minorias
sociais são maiorias políticas, e por conseqüência, as maiorias sociais
são minorias política. Não é de se estranhar que os trabalhadores
conformam a maior parte da sociedade e são representados por uma ínfima
minoria, sendo essa a maior sub-representação existente.
Ronaldo Tamberlini Pagotto é advogado trabalhista em São Paulo e integrante da coordenação nacional da Consulta Popular.
fonte: brasildefato
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