domingo, 9 de novembro de 2014

10 Perguntas e respostas sobre o Decreto de Participação Social e a Reforma Política


Muito se fala sem conhecer, induzindo a opinião pública com fantasmas e outras alegações que apenas demonstra o quanto essa pauta da participação popular é temida



31/10/2014
 Por Ronaldo Pagotto

 O decreto presidencial 8243/2014 implementa a Política e o Sistema Nacional de Participação Social foi publicado no último 25 de maio e desde então vem sendo discutido na grande imprensa, no Congresso Nacional, nas redes sociais etc. E muito se fala sem conhecer, induzindo a opinião pública com fantasmas e outras alegações que apenas demonstra o quanto essa pauta da participação popular é temida.

A relação entre esse simples decreto e a bandeira estrutural da reforma política é evidente, e buscaremos demonstrar isso nesse artigo.

1. Qual o papel dos Conselhos e por que mudar o que já existe?
Os Conselhos existem desde o primeiro governo de Getulio Vargas, que instituiu o Conselho Nacional do Café. Desde então já temos mais de 30 Conselhos Nacionais, que se desdobram em estaduais, regionais, municipais, de bairros etc. 

A marca desses Conselhos é na formulação de políticas públicas e propostas mais estruturais, que, submetidas ao chefe do executivo, podem se converter em projetos de lei ou políticas públicas. Alguns exemplos: política da merenda escolar, o programa de aquisição de alimentos, a estruturação do SUS, a política nacional de resíduos sólidos, dentre centenas de outras já implantadas e que ajudam a melhorar a vida do povo. Um dos mais emblemáticos é o Conselho Nacional de Saúde, que foi responsável pela construção da maior parte das propostas que conformaram o projeto do SUS na Constituinte de 1988.

Os membros são definidos por uma separação geral, sempre com a maior parte advindo da sociedade civil. Não há função remunerada para o funcionamento nos Conselhos, todo o trabalho é voluntário.
A mudança com o decreto é para tornar o funcionamento mais homogêneo, integrado entre si, constituir o método de participação popular como uma política definitiva, instituir métodos de participação presencial, com ampla publicidade, virtual, etc.


2. Afinal, o que define o decreto de importante?

O decreto tem centralidade nas seguintes definições:

maior integração entre os conselhos existentes, com a criação de fóruns interconselhos;

criação da ouvidoria e mesa de diálogo para facilitar o acompanhamento das propostas;

formatação de mecanismos de participação para uniformizar o funcionamento dos conselhos: composição, métodos de eleição, publicidade dos atos, os instrumentos de participação (fóruns, audiências, consultas, participação virtual e os próprios conselhos);

É uma forma de aproveitar as melhores práticas dos Conselhos com diretrizes gerais de uma proposta para essa participação, não limitadas ao que já vem sendo feito, mas apresentadas como horizonte para a organização dessa relação entre sociedade civil e governo, que se dá no interior desse processo dos Conselhos.

3. O decreto ultrapassa os limites da atuação do executivo e fere a separação dos poderes?

O decreto não fere a separação dos poderes, tampouco passa por cima do Congresso Nacional. Está dentro das responsabilidades privativas da Presidência da República, definidas no art. 84 da Constituição Federal, limitadas nesse caso a organização interna do Poder Executivo.

Não fere as prerrogativas, seja por tratar apenas de organização dos processos já existentes, seja por não criar novas despesas, cargos, instituir órgãos públicos ou criar estruturas. Todas as definições são restritas ao funcionamento dos Conselhos e aprimoramento dos seus mecanismos.

4. O decreto institui uma política bolivariana e dos soviets no Brasil?

Essa é uma visão duplamente deturpada. A primeira é deturpar o significado dos processos dos Soviets (Rússia pré revolução de 1917) e processos chamados de bolivarianos (Venezuela e Bolívia). Nesses processos o que se fez e faz na atualidade é criar processos de uma participação popular ativa, seja na proposição de políticas, seja no controle das ações do Estado, seja também no acompanhamento do parlamento e executivo.

A segunda é quanto os Conselhos (leia-se os processos existentes desde meados da década de 1930) seriam um ataque à democracia brasileira. Trocando em miúdos, seria o mesmo que dizer que ajustar e aprimorar – ainda que de forma limitada – nossa democracia seria atacá-la. Nessa lógica, o ataque a democracia seria em torna-lá um pouco mais democrática. Não precisa muito para constatar que se trata de uma paranóia inexplicável, lançada por setores avessos a participação popular, aos processos de envolvimento do povo, etc. Vale destacar, uma vez mais, que se trata de uma paranóia com singelas mudanças nesses processos, longe dos desafios para avançar na democracia brasileira.

5. O decreto terá que ser cumprido pelo futuro governo. Isso não seria uma forma de gerar instabilidade se a oposição vencer?

Os Decretos Presidenciais são expedidos pela Presidência da República, e se for da conveniência será mantido, do contrário com a mesma formalidade para sua edição será a sua revogação. O caminho para instituir é o mesmo para revogar, portanto, se porventura houver mudança de governo, o novo governo logo 
no primeiro dia de mandato revoga o que está ao seu alcance, o que inclui os Decretos Presidenciais.

6. Porque construir as políticas pelos Conselhos e não pelas estruturas já existentes?

Trata-se de uma questão complexa. A democracia conforma dois grupos: representantes e representados. Atribui a eles responsabilidades distintas, parte delas concorrentes (votar e ser votado) e a maior parte complementar (os primeiros são eleitos para representar o segundo grupo).
Entretanto, esse formato é datado do final do século XVIII e carece de profundos ajustes, sendo destes ajustes um deles ganha destaque: o papel dos chamados representados na democracia, não cabendo a postura de apenas eleger e esperar, mas adotar uma posição ativa no processo político.

Essa postura ativa depende, dentro da institucionalidade, de criar espaços e mecanismos que estimulem e criem espaço para isso.

As estruturas existentes não foram construídas para contar com a participação popular, são na maioria das vezes estruturas burocráticas, distantes do povo, encasteladas e apresentando propostas que seriam voltadas para a maioria. Mas se tais propostas não contarem, desde a sua concepção e construção, com a participação dos setores a que se destinam, tendem a ser propostas distantes da realidade, baseadas em análises do passado e não alcançando as reais necessidades do povo.

Instituir mecanismos de participação vai ao encontro dessa dinâmica histórica e sinaliza para mudanças importantes e necessárias na democracia brasileira.

7. Qual a relação entre o Decreto 8243 e as questões estruturais do sistema político brasileiro?

O decreto é uma singela medida de ajuste e aprimoramento de mecanismos existentes de participação popular. Mas não revertem o problema de um sistema que pouco consulta a população, que não dispõe de mecanismos efetivos de controle das políticas e dos representantes, que quando muito se resumem a não votar nas futuras eleições – nos casos de não aprovação de um eleito.

A reação ao decreto, que não vem dos setores progressistas (para demonstrar o quanto a proposta é limitada), mas justamente dos setores mais conservadores e atrasados, que temerosos do decreto no fundo indicam temor à participação popular.

Tal reação é, por si só, um indicador de que o decreto está no caminho certo. Esses setores avessos as mudanças necessárias na sociedade brasileira, sabem que quanto maior a participação social, maior a tendência a democracia representar os interesses das maiorias – diferente do que nos acostumamos no Brasil.

8. Quais são os principais problemas do sistema político brasileiro?

A democracia brasileira foi instituída oficialmente em 1889 e 1891, com a Constituição. Nesses pouco mais de 120 anos, nossa democracia passou 40 anos com voto exclusivo dos homens alfabetizados (menos da metade da população masculina), aproximadamente 50 anos com voto exclusivo de homens e mulheres alfabetizados (igualmente na faixa dos 50% da população) e apenas em 1988, ou seja, com menos de 30 anos com o voto universal (homens e mulheres, analfabetos e pobres). Isso sem contarmos com os 30 anos somando as duas ditaduras militares. Ou seja, na maior parte do nosso processo democrático, estivemos sob uma democracia restrita ou ditaduras.

Nosso sistema político tem inúmeros problemas, mas para destacar os mais centrais, por uma opção didática em duas dimensões: os problemas de forma e os de conteúdo.

Os problemas de forma, de modelo, seria centralmente um “defeito” de origem: ela é excessivamente representativa e pouco ativo, participativa. Nela o povo vota a cada 2 anos, seja para o executivo/legislativo federal e dos estados, seja para o executivo e legislativos municipais, em um calendário de expectativa – frise-se que desde o ponto de vista da institucionalidade – do povo. Com mecanismos de participação, seja via plebiscito, referendo ou na proposição de leis ou controle do trabalho dos representantes, extremamente complexos e difíceis. Tanto que temos poucos processos de leis criadas a partir da vontade popular, plebiscitos e referendos que somados não alcançam a soma dos dedos das mãos.

E esse processo viciado, apassivador, se esgotou. O povo não quer mais ter apenas o período eleitoral para apresentar suas opiniões, críticas e anseios, e, não raras vezes, não quer mais ser importunado no período eleitoral por absoluta crise desse modelo.

Quanto aos problemas de conteúdo, mais estruturais, teríamos duas ordens igualmente importantes. A primeira é uma igualdade formal entre desiguais do ponto de vista da visibilidade, da ocupação de espaços da política, redundando em um sistema formal em que resulta em um sistema político conformado por homens, brancos, ricos (ou financiados por ricos), heterossexuais, etc. A isso se soma uma segunda ordem, igualmente relevante, que é um sistema político marcado pela supremacia do poder econômico nos processos eleitorais. Candidatos são palatáveis ou não a depender do quanto conseguem captar de doações (que ainda utilizamos esse termos inadequado, o correto seria utilizar o conceito de investimento), conformando parlamentos com 80 a 90% de representantes dos grandes grupos...economicos.

9. Esses problemas podem ser resolvidos por ajustes no sistema eleitoral? Não seria melhor fazer isso pelo Congresso Nacional?

Acreditar que esses problemas possam ser resolvidos com um projeto de lei aqui, outro acolá é reduzir a dimensão dos limites reais e efetivos da nossa democracia. Não estamos propondo uma reforma no sistema eleitoral, tópica, homeopática, mas uma reforma estrutural no nosso sistema político e que seja capaz de enfrentar as duas dimensões dos seus limites (forma e conteúdo).
 
Outra questão sobre o caminho dessa mudança é acreditar que será realizada pelo Congresso Nacional eleito com essas distorções e incapaz de aprovar leis que prejudique os seus próprios interesses. Esse caminho não existe.

O caminho que apostamos é via uma Assembléia Constituinte, com dupla exclusividade: eleita estritamente para a Constituinte e especificamente para reformar o Sistema Político, dentro das possibilidades do poder constituinte derivado.

10. Falar em reforma política não é desviar o tema central das lutas populares, especialmente os milhões que se mobilizaram em junho de 2013?

Essa questão não é incomum e induz a simplificações perigosas. A começar por criar uma visão dual do processo, como se destacar uma luta fosse desconsiderar as lutas por direitos e que povoam as ruas do Brasil desde muito tempo (inclusive antes de junho).
 
As bandeiras de junho eram majoritariamente progressistas, parte delas dentro das chamadas lutas econômicas, tais como mais moradias, direito ao transporte público e gratuito, à saúde e educação públicas e de qualidade, à redução do custo de vida, dentre outras e outra parte de bandeiras mais gerais sobre a participação política: maior participação e visibilidade da mulher, dos negros, LGBTT, de denúncia ao representantes eleitos do executivo e legislativo das três esferas e maior participação popular dentro do sistema político.

E a maior parte dessas bandeiras populares e democráticas encontram uma barreira duríssima: os parlamentos nacional, estaduais e municipais não aprovam essas mudanças.
Poderíamos afirmar que para passar – aprovar – basta a pressão popular, uma verdade absoluta, mas também é verdade que temos um sistema político marcado por representantes dos grandes grupos econômicos e avessos a essas bandeiras populares e democráticas. Portanto, não se trata de pressionar para a aprovação de uma ou outra bandeira, mas identificar que com esse sistema, o povo paga a conta e elege representantes das minorias sociais, conformando uma discrepância estrutural: minorias sociais são maiorias políticas, e por conseqüência, as maiorias sociais são minorias política. Não é de se estranhar que os trabalhadores conformam a maior parte da sociedade e são representados por uma ínfima minoria, sendo essa a maior sub-representação existente.

Ronaldo Tamberlini Pagotto é advogado trabalhista em São Paulo e integrante da coordenação nacional da Consulta Popular.

fonte: brasildefato

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